Lembro-me de dizer essa frase deitado no colo de meu pai. Nossa fazenda humilde, com poucos pertences, era meu mundo. Ali, nós, os meninos, guerreiros, soldados de Matrad, fingíamos lutar. Pelo príncipe Rizziar! Gritávamos antes de começar a batalha contra os carvalhos que representavam os invasores herculeanos.
Naquela noite estrelada, ali da colina mais alta era possível ver todo o vale de Holm, minha terra natal. As chaminés fumaçavam, janelas e portas iluminadas e abertas, luzes brilhantes na praça de são Holm e a igreja toda enfeitada pelas bandeirolas. Logo iam começar os fogos: era dia do santo redentor, que dava nome ao vale, protetor de Matrad.
Assistimos ao espetáculo de cores, eu e ele, sorrindo, felizes. Comemos deliciosos biscoitos e bebemos leite. A fanfarra começara a tocar logo após o festival de fogos. Estava uma noite memorável. Após risos e brincadeiras, meu pai me segurou os braços e olhou fixamente em meus olhos, recordo-me de sua expressão confiante, seu riso benevolente.
As duas luas de Kalindra avistadas de praia na Úmbria
Malick, você está virando um homem. No ano que se inicia, irá servir como pajem de um velho amigo. Não quero que desgaste tuas mãos na lavoura ou tangendo os rebanhos. Muito menos que suporte o peso da espada ou sinta no rosto o calor do sangue. Aprenderá a segurar a arma que move o mundo, nas mãos certas. Arma que pode iniciar ou encerrar guerras. Que pode selar amores eternos ou desfazê-los: a pluma. Senti meu sangue gelar. Como ia viver sem meu pai? Sem meus amigos? Sem os biscoitos da tia Navria?
Dias depois, quis o destino, que estivesse eu na carroça quando Holm ia virando apenas uma marca distante no horizonte. Hoje, é um ponto desenhado no mapa que está sendo finalizado pelos monges a minha frente. Entre esses eventos que narrei e o momento atual, em que meus olhos insistem em negar-me a luz, é que situarei as páginas deste livro de histórias das minhas viagens ao longos das sessenta e oito festas de São Holm que pude presenciar.
Conheci muitas terras, aprendi sobre diversas culturas e idiomas, senti frio no norte distante, nas sombras das dorsais, em Úmbria, diante do templo de Kryskara, e calor nos desertos do sul, onde os gritos dos chefes Herculeanos ecoam. Naveguei os silenciosos veleiros dos elfos de Elvonia, brancos como a luz de Nûa, a lua clara. Conheci o templo dos quatro Elvaris. Comi com os finos talheres da rainha Eleanor, de Matrad. Ouvi as histórias da rainha sem coroa de Ânglia, às margens do Baikial.
Pôr-do-sol às margens do Baikial (Ânglia)
E agora, meus pobres olhos já quase sem luz avistam os jovens monges retocando a frase na parte inferior do mapa. Este será parte da recepção de boas-vindas aos visitantes da distante terra a oeste, chamada de Dyrwood. A frase? Escolhi para iniciar meu livro: bem-vindos a Kalindra!


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